“Há muitas memórias, amado Guruji” por Abhijata Sridhar

 

Tradução: Marcia Neves Pinto

Tenho uma memória vívida de uma aula terapêutica no Instituto.
Em uma tarde ensolarada, quatro a cinco meses antes de acontecer o inevitável, um dia como outro qualquer. Conforme o programa, a aula de terapia começou as quatro da tarde. Guruji entrou na aula vestido em seu kurtā de seda e com um dhoti de algodão. Ele sentou-se na plataforma para recuperar a respiração enquanto entoávamos os mantras.

A cada vez que isso acontecia, em cada classe, eu sempre abria meus olhos para olhar para ele. Às vezes, ele também recitaria os mantras. Às vezes, olharia para os estudantes ao redor do salão. Às vezes, ele ficaria sentado com os olhos fechados e isso era muito bonito de se ver. No final do “HarihiOm” ele levantou-se e, como um homem em uma missão, dirigiu-se de um do corredor para o outro, ajudando a todo mundo. A cada passo parecia lançar um olhar sobre tudo ao seu redor — o aluno, o professor, o corredor, os suportes e até mesmo os observadores. Nada lhe escapava.
Aproximadamente às 17h:30 daquele dia, Guruji aproximou-se da plataforma novamente e sentou-se. Eu disse a ele que poderíamos ir pra casa, já que ele tinha estado lá por um bom tempo. Guruji sabia muito bem como me ignorar, especialmente em situações como essa. Ele ficou quieto olhando para a grade, onde um estudante a quem ele acabara de ensinar torções estava fazendo Ardha Chandrāsana com as costas voltadas para a grade. Guruji foi até o estudante e o professor que o estava ajudando e disse:
—O que é isto?
O professor disse:
—Guruji, esta pessoa tem um problema nas costas e o estou ajudando a fazer Ardha Chandrāsana.
—Eu sei, ele retrucou. —Ensinei Marichyāsana a ele, agora mesmo. A perna de base dele está correta?
O professor agora estava perdido e parecia ainda mais perdido. Ele apenas murmurou algumas palavras.
—Você não vê a cabeça do fêmur? — Guruji perguntou.
Guruji empurrou a mão do professor que estava no quadril do aluno e começou a ajustar a cabeça do fêmur do aluno com sua própria mão, o topo da pélvis com a cabeça e a cabeça com a outra mão.
Fiquei alarmada! Guruji contava 95 anos completos quando isso aconteceu. Como neta, eu não queria que ele se extenuasse.
Eu disse:
—Tātā, eu faço isso. Por favor, diga-me o que fazer.
Ele ignorou-me novamente. Pensei que seria possível que ele não me tivesse ouvido. Então levei minhas mãos para onde estavam as mãos do Guruji, Guruji veria isso e deixaria esse trabalho para mim.
Àquela altura, o dia estava chegando ao fim. A noite se instalou, o sol já não estava em chamas, as aves voltavam para seus ninhos e, claro, todos ansiavam por se retirar das tarefas diárias, em casa.
Mas Guruji não parecia ter tal plano. Ele me olhou com raiva. Ele não era um homem de suar muito. Mas naquela ocasião, sua respiração estava mais pesada e ele estava suando. Seus lábios estavam tremendo. Todos estes eram sinais de pura raiva disfarçada. Não sabia o que fazer. Sua simples expressão empurrou minhas mãos para longe do aluno. Ele me olhava como se tivesse me atingido com uma arma paralisante.
— Deus pode me chamar a qualquer momento. Deixe-me ao menos ajudar ao aluno enquanto estou aqui. Ninguém quer aprender. (…)
— Vocês nem usam a cabeça, nem trabalham com o coração. Vocês são todos *Trishankus. Não estão nem aqui, nem lá. Eu estou aqui e em todo o lugar. Esta é toda a diferença entre mim e vocês.
Guruji então trouxe o estudante para baixo e o estudante tocou os pés do Guruji.
— Obrigado, Guruji — ele disse. — Nunca me senti assim.
Guruji sorriu para ele, olhou para mim e disse:
—Veja… Olhe para o rosto dele agora. Olhe para os olhos.
Nunca pensei ter entendido como ler os olhos de uma pessoa neste contexto. Mas ali estava tudo. Tão claro como pode ficar. Os olhos do estudante estavam claros e brilhantes
Guruji olhou para mim e disse:
—Se esta é a situação enquanto estou vivo, Deus sabe o que vocês farão quando eu tiver partido. (…)

Como sua aluna, o que significa para mim o aniversário de sua passagem?
Deixe-me compartilhar com você uma história de cerca de 10 anos atrás. Era apenas mais um dia de prática no Instituto. Mas para mim, era o aniversário do falecimento da minha avó, mãe do meu pai. A cerimônia deveria ser realizada na casa dos meus pais, em Aundh. O plano era que eu terminaria a prática às 11h:00, iria para casa, tomaria um banho, lavaria o cabelo, e então sairia para Aundh para participar. Eu informei ao Guruji isto no início da sessão. O relógio marcou 11h:00, 11h:15, 11h:30… Em diferentes momentos, eu poderia ter dado ao Guruji uma dica do horário… Que eu tinha que ir.
Mas ele era todo ensino. Eu comecei a ficar inquieta. Finalmente, ele disse:
— Sua avó estará mais feliz no céu se você aprender isso corretamente, do que apenas participar dos rituais. Pode ir agora.
Nós somos ritualísticos em muitas esferas da vida. Ritualísticos na vida, no comportamento, na prática, na aprendizagem…
Poucas vezes o nascimento e a morte são ritualísticos.
Nascimento e morte estão além do controle humano. Não pertencem ao nosso domínio. A vida se esvai quando chega a hora. Acontece tão naturalmente quanto, por exemplo, respirar. Simplesmente acontece.
A compreensão deste fenômeno não é diferente de uma aula de Uttānāsana que Guruji uma vez ministrou em uma aula para mulheres. Ele me disse para fazer Uttānāsana. Como eu estava tentando fazer com que os alunos alongassem o tronco para frente, ele disse:
— Você não precisa falar tanto. Eles só têm que ir para baixo.
Fiquei um pouco intrigada com isso. Que tal declaração viesse de Guruji, me confundiu e ao meu aprendizado dos últimos catorze anos sob a orientação de BKS Iyengar e seus filhos.
Ele retomou disse:
— Como a flor cai da árvore, deixe seu tronco cair. Nem a flor tem uma mente própria pensando “eu não vou cair”, nem a árvore tem uma mente própria pensando “não permitirei que minha flor se vá”. Podemos dizer: “A flor apenas se entrega à Mãe Terra.” Ou podemos dizer: “A árvore deixou a flor ir-se”.
Onde há o senso de ego, ambas as declarações são tidas como verdadeiras. E, onde o senso de ego não está presente, nenhuma das declarações é tida como verdadeira.
A flor cai. Simplesmente acontece.
Ali… Exatamente ali… Um velho sábio deitado em um banco de Vipārita Dandāsana enquanto me guiava no ensino de um āsana, está exposta a lição de vida. Toda a sua vida, ele fez exatamente isso. Enquanto através do corpo ensinava āsana e prānāyāma, ele nos ensinava como remover as complexidades e os nós de nossas próprias mentes, de forma a podermos vislumbrar que o yoga está bem aqui.
Tão simples quanto uma flor caindo de uma árvore, tão profundo quanto um ato de rendição…
Guruji, vamos sentir terrivelmente a sua falta em todos os momentos.

(trecho extraído do artigo publicado originalmente em A year on… Memories abound, Beloved Guruji, 2016, de Abhijata Sridhar)

*Trishanku é um personagem da índia hindu. Trishanku é comumente referido através da menção do “céu de Trishanku”. A palavra Trishanku passou a denotar um meio termo ou limbo entre os objetivos ou desejos de alguém e seu estado ou posses atuais.

Notícias Relacionadas